Sei que não vou por aí

 

ilha de Valentia, Irlanda

 

Cântico Negro 

in Poemas de Deus e do Diabo, (1926), de José Régio,


        Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
        Estendendo-me os braços, e seguros
        De que seria bom que eu os ouvisse
        Quando me dizem: "vem por aqui!"
        Eu olho-os com olhos lassos,
        (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
        E cruzo os braços,
        E nunca vou por ali...

        A minha glória é esta:
        Criar desumanidades!
        Não acompanhar ninguém.
        — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
        Com que rasguei o ventre à minha mãe

        Não, não vou por aí! Só vou por onde
        Me levam meus próprios passos...
        Se ao que busco saber nenhum de vós responde
        Por que me repetis: "vem por aqui!"?
        Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
        Redemoinhar aos ventos,
        Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
        A ir por aí...

        Se vim ao mundo, foi
        Só para desflorar florestas virgens,
        E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
        O mais que faço não vale nada.

        Como, pois, sereis vós
        Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
        Para eu derrubar os meus obstáculos?...
        Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
        E vós amais o que é fácil!
        Eu amo o Longe e a Miragem,
        Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

        Ide! Tendes estradas,
        Tendes jardins, tendes canteiros,
        Tendes pátria, tendes tetos,
        E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
        Eu tenho a minha Loucura!
        Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
        E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

        Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
        Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
        Mas eu, que nunca principio nem acabo,
        Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

        Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
        Ninguém me peça definições!
        Ninguém me diga: "vem por aqui"!
        A minha vida é um vendaval que se soltou,
        É uma onda que se alevantou,
        É um átomo a mais que se animou...
        Não sei por onde vou,
        Não sei para onde vou
        Sei que não vou por aí!


 

 

 

(clique na foto para assistir à declamação do poema por Maria Bethânia)

 

 

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