As Minhas Poesias Preferidas

Rústica

 

Ser a moça mais linda do povoado

Pisar, sempre contente, o mesmo trilho

Ver descer sobre o ninho aconchegado

A bênção do Senhor em cada filho.

 

Um vestido de chita bem lavado,

Cheirando a alfazema e a tomilho ...

Com o luar matar a sede ao gado,

Dar às pombas o sol num grão de milho ...

 

Ser pura como a água da cisterna,

Ter confiança numa vida eterna

Quando descer à “terra da verdade”...

 

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!

Dou por elas meu trono de Princesa,

E todos os meus Reinos de Ansiedade. 

 

Florbela Espanca (1894-1930)

 

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 Eu não sou de ninguém

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Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser

Há-de ser luz do Sol em tardes quentes;

Nos olhos de água clara há-de trazer

As fúlgidas pupilas dos videntes!

 

Há-de ser seiva no botão repleto,

Voz no murmúrio do pequeno insecto,

Vento que enfuna as velas sobre os mastros!...

 

Há-de ser Outro e Outro num momento!

Força viva, brutal, em movimento,

Astro arrastando catadupas de astros!

 

Florbela Espanca (1894-1930)

 

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Poema em linha recta

                                                                                    


Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, 

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, 

Indesculpavelmente sujo, 

 Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, 

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, 

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, 

Que tenho sofrido enxovalhos e calado, 

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

 Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, 

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, 

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, 

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco; 

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, 

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo 

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, 

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana 

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! 

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. 

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 

Ó príncipes, meus irmãos,

 

Arre, estou farto de semideuses! 

Onde é que há gente no mundo?

 

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

 

Poderão as mulheres não os terem amado, 

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! 

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, 

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? 

Eu, que venho sido vil, literalmente vil, 

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

 

Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)

 

 

 

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O mostrengo

 

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse, “Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?”

E o homem do leme disse, tremendo:

“El- Rei D. João Segundo!”

 

“De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?”

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso,

 

“Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?”

E o homem do leme tremeu, e disse,

“El- Rei D. João Segundo!”

 

Três vezes do leme as mãos ergeu,

Três vezes ao leme as repreendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

“Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um Povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo;

Manda a vontade que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!”

 

Fernando Pessoa

Mensagem (1945)

 

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AUTORRETRATO

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

 

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E sòmente no altar amando os frades,

 

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades,

Num dia em que se achou cagando ao vento.

 

Bocage (1765- 1815)

 

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ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO

E QUE A MINHA ALMA DITOU,

VOS DIRÁ COMO O ALEIXO

VIVEU, SENTIU E PENSOU.

 

Peço às altas competências

perdão, porque mal sei ler,

p'ra aquelas deficiências

que os meus versos possam ter.

 

Quando não tenhas à mão

outro livro mais distinto,

lê estes versos que são

filhos das mágoas que sinto.

 

Julgam-me mui sabedor

e é tam grande o meu saber

que desconheço o valor

das quadras que vou fazer!

 

Compreendo que envelheci

e que daqui já não passo,

como não passam daqui

as pobres quadras que faço.

 

António Aleixo (1899- 1949)

poeta popular algarvio

 

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Pátria

 

Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 

Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exactidão

Dum longo relatório irrecusável

 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

 

E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo de palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas  

Pela nudez das palavras deslumbradas

 

- Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raíz e água

Ó minha pátria e meu centro

 

Me doí a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo

 

Sophia de Mello Breyner

Livro Sexto”

 

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Bucólica

 

A vida é feita de nadas:

De grandes serras paradas

À espera de movimento;

de searas onduladas

Pelo vento;

 

De casa de moradia

Caídas e com sinais

De ninhos que outrora havia

Nos beirais;

 

De poeira;

De sombra de uma figueira;

De ver esta maravilha:

Meu pai a erguer uma videira

Como uma Mãe que faz a trança à filha.

 

Miguel Torga

Diário I

 

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  Lágrima de preta

 

Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

 

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.

 

Olhei-a de lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

 

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

 

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

 

nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

 

António Gedeão

Máquina de Fogo (1961)

 

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  Menino que vais na rua

(Serenata cínica para o Bettencourt cantar)

 

Menino que vais na rua,

não cantes nem chores: berra!

Cospe no céu e na lua

e aprende a pisar a terra.

 

Aprende a pisar o mundo.

Deixa a lua aos violinos

dos olhos dos vagabundos

e dos poetas caninos.

 

Aprende a pisar a vida.

Deixa a lua às costureiras 

- pobre moeda caída

de quem não tem algibeiras.

 

Aprende a pisar no chão

o silêncio do luar

sem sentir no coração

outras pedras a gritar.

 

Pisa a lua sem remorsos,

estatelada no solo...

Não hesites! Quebra os ossos

dessa criança de colo.

 

Pisa-a, frio, com coragem,

sem olhos de serenata:

que isso que vês na paisagem

não é ouro nem é prata.

 

Menino que vais na rua,

não chores, nem cantes; berra!

Ou, então, salta prà lua

e mija de lá na terra.

 

José Gomes Ferreira

 

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Pedra Filosofal

 

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

 como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

 como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

 

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

 

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa dos ventos, Infante

caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, paço de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto forno, geradora,

cisão de átomo, radar,

ultra som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

 

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

 

António Gedeão

Movimento Perpétuo (1956)





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